CRIANÇAS SEM AUTONOMIA.
Carlos Neto é professor e investigador na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), em Lisboa. Trabalha com crianças há mais de quarenta anos e há uma coisa que o preocupa: o sedentarismo, a falta de autonomia dada pelos pais às crianças e a ausência de tempo para elas brincarem livremente, correndo riscos e tendo aventuras. É um problema que tem de ser combatido, diz. Porque a ausência de risco na infância e o facto de se dar “tudo pronto” aos filhos, cada vez mais superprotegidos pelos pais, acaba por colocá-los em perigo. Soluções? Uma delas passa por “deixar de usar a linguagem terrorista de dizer não a tudo: não subas, olha que cais, não vás por aí…”.
Há dez anos
já se falava no sedentarismo das crianças portuguesas. Lembro-me que dizia
que uma criança saudável é aquela que traz os joelhos esfolados. Como
estamos hoje?
Há dez anos nós falávamos que as
crianças tinham agendas, hoje digo que têm super-agendas! Há dez anos
eu dizia que as crianças saudáveis eram as que tinham os joelhos esfolados.
Hoje, acho que os joelhos já não estão esfolados, mas a cabeça destas crianças
já começa a estar esfolada, por não terem tempo nem condições para brincar
livremente. Brincar não é só jogar com brinquedos, brincar é o corpo estar em
confronto com a natureza, em confronto com o risco e com o imprevisível, com a
aventura.
Os joelhos já não estão esfolados, mas a cabeça
destas crianças já começa a estar esfolada, por não terem tempo nem condições
para brincar livremente
As crianças brincam porque
procuram aquilo que é difícil, a superação, a imprevisibilidade, aquilo que é o
gozo, o prazer. E, portanto, as crianças que eu apelido de crianças
“totós”, são hoje definidas como crianças superprotegidas, crianças que não
têm tempo suficiente para brincar e crianças que não têm tempo nem espaço
para exprimir o que são os seus desejos. E o primeiro desejo de uma criança é o
dispêndio de energia, é brincar livre e com os outros, mesmo que muitas vezes
em confronto. Porque o confronto é uma forma preciosa de aprendizagem na vida
humana. E nós estamos a retirá-los de tudo isso. Estamos a dar tudo pronto e
não estamos a confrontá-los com nada. E isso terá muitas consequências.
Estamos a
falar de que idades?
Estamos a falar de crianças entre
os 3 e os 12 anos. Significa que aumentou de facto esta taxa de sedentarismo,
eu diria mesmo de analfabetismo motor, estamos a falar de iliteracia motora.
Trabalho há 48 anos com crianças e sei avaliar o que se passou. As crianças têm
menos capacidade de coordenação, menos capacidade de perceção espacial, têm de
facto menor prazer de utilizar o corpo em esforço, têm uma dificuldade de jogo
em grupo, de ter possibilidades de ter aqueles jogos que fazem parte da idade.
Ao mesmo tempo, institucionalizou-se muito a escola. Nós hoje temos as
crianças sentadas durante muito tempo, não há uma política efetiva adequada de
recreios escolares. Os recreios são organizados muitas vezes em função de um
modelo de trabalho, ou de um modelo de funcionamento pedagógico, que tem a ver
mais com as aprendizagens pedagógicas obrigatórias ou consideradas úteis, e
muito menos com as atividades do corpo em movimento. E, por isso, há
alguns trabalhos de investigação que temos vindo a fazer, onde tentamos mostrar
a correlação entre o tempo que as crianças têm de recreio, a qualidade de
atividade que fazem no recreio e a capacidade de aprendizagem na sala de aula.
"Temos hoje crianças de 3 anos que, ao fim de dez minutos de
brincadeira livre, dizem que estão cansadas, temos crianças de 5 e 6 anos que
não sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7 anos que não sabem saltar
à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem atar os sapatos."
A que
conclusões já chegaram?
Uma delas é que as crianças
que são mais ativas no recreio, e que têm mais socialização, têm na sala de
aula mais capacidade de atenção e de concentração. Isto tem a ver com uma
tendência que está a acontecer em quase todo o mundo, de restringir o tempo de
recreio para ter mais tempo na sala de aula. O que nós concluímos é que o tempo
de recreio é absolutamente fundamental para a saúde mental e para a saúde
física da criança. O recreio escolar é o último reduto que a criança tem
durante a semana para brincar livremente. E, de facto, verificamos esta
relação muito clara entre ser ativo no recreio e estar concentrado dentro da
sala de aula.
As crianças mais ativas têm mais capacidade de
aprendizagem e mais capacidade de concentração. E têm, a médio e a longo prazo,
mais capacidade de terem sucesso.
Isto vem ao encontro de algumas
investigações que têm sido feitas nos Estados Unidos, que relacionam o ser
ativo com o desenvolvimento do cérebro e com o desenvolvimento neurológico.
E, de facto, demonstra-se claramente que as crianças mais ativas têm mais
capacidade de aprendizagem e mais capacidade de concentração. E têm, a médio e
a longo prazo, mais capacidade de terem sucesso, mais autoestima e maior
capacidade de autoregulação.
Esta questão
dos recreios e do tempo que as crianças têm de passar sentadas na sala de aula
está de alguma forma relacionada com o aumento dos diagnósticos de casos
de hiperatividade? Muitos destes casos podem ocorrer porque as crianças
não despendem a energia física que é suposto despenderem?
Os currículos hoje estão a ser
demasiado exigentes quanto ao número de horas em que as crianças têm de estar
sentadas. Devemos ter um plano para tornar a sala de aula mais ativa.
Acabamos de fazer um programa com o Ministério da Educação, o Fit
Escola, que é uma plataforma que tem como objetivo ajudar os pais, os
alunos e os professores a tornarem as crianças um pouco mais ativas. E uma das
ideias base é esta: se mudássemos a configuração das mesas e das cadeiras
da sala de aula — estando as crianças a adquirir conhecimentos fundamentais,
mas estando a fazê-lo de forma ativa –, não aprenderiam melhor?
É inaceitável que 220 mil crianças estejam
medicadas em Portugal. Isto não pode acontecer.
Há aqui um fator muito importante
que tem a ver com a maneira como os adultos, professores ou pais, estão
neste momento a controlar as energias das crianças. Numa grande parte dos casos
essa energia é natural, mas é considerada hoje como doença ou inapropriada.
É inaceitável que 220 mil crianças estejam medicadas em Portugal. Isto não
pode acontecer. Tem de haver um maior esclarecimento para verificar
efetivamente se aquelas crianças merecem ser medicadas porque são de
facto hiperativas ou têm défice de atenção. Mas acredito que uma
grande parte dessas crianças não necessita de ser medicada.
Há crianças
de 11 anos que entram às 8h15 e saem as 13h15 com apenas dois recreios de 15
minutos neste espaço de tempo, em que as aulas são sempre de 90 minutos. Nem um
adulto trabalha tanto tempo seguido…
Pois não. Isso é contra natura,
não tem a ver com as culturas de infância. Temos de ter um maior equilíbrio
entre o que é uma estimulação organizada e uma estimulação ocasional, ou seja,
entre o que é tempo livre, tempo de jogo livre, e o que é tempo de organização
académica.
Brincar não
é perder tempo, no seu entender…
Não. E por uma razão. Todos
os estudos têm vindo a demonstrar que na infância, até aos 10/12 anos de idade,
é absolutamente essencial brincar para desenvolver a capacidade
adaptativa, quer do ponto de vista biológico quer do ponto de vista social. E
hoje não é isso que estamos a fazer. Estamos a dar tudo pronto, tudo feito, e
não estamos a confrontar as crianças com problemas que elas têm de resolver.
Sejam eles confrontos com a natureza – que deixaram de existir – sejam eles
confrontos com os outros.
Brincar à luta é saudável. É um indicador de vida
saudável das crianças. Como correr atrás de alguém, ou ser perseguido. Brincar
é civilizar o corpo.
Por exemplo, a luta, a corrida e
perseguição, são comportamentos ancestrais que as crianças têm de viver na
infância e que são essenciais para o crescimento. A apropriação do
território, a noção de lugar, o medir forças de uma forma saudável, o brincar a
lutar. Hoje observamos comportamentos na escola, quer por parte dos pais quer
por parte dos educadores, que não são corretos. Porque quando veem duas
crianças agarradas vão logo separá-las — e elas muitas vezes estão a brincar à
luta, e brincar à luta é saudável. É um indicador de vida saudável das
crianças. Como correr atrás de alguém, ou ser perseguido. Brincar é civilizar o
corpo.
Eu não tenho nada contra os
exames, nem contra as metas escolares. Agora, os exames e as metas curriculares
não podem impedir que não se faça uma reflexão daquilo que a criança necessita
para crescer de forma saudável. E, de facto, esta relação entre tempo
sentado e tempo ativo precisa de uma maior reflexão no sistema educativo, sob
pena de termos gravíssimos problemas de saúde pública a curto e a médio prazo.
Nós vamos pagar muito caro o facto de não termos esse equilíbrio entre
estimulação organizada e informal. E quanto mais descemos na infância
pior.
"As crianças brincam porque procuram aquilo que é difícil, a
superação, a imprevisibilidade, aquilo que é o gozo, o prazer. E, portanto,
aquilo a que eu chamo crianças "totós", são hoje definidas como
crianças superprotegidas, crianças que não têm tempo suficiente para brincar e
crianças que não têm tempo nem espaço para exprimir o que são os
seus desejos."
Os adultos,
tanto pais como educadores, têm também “culpa” nesta matéria?
Não pode haver uma linguagem
terrorista, que é própria dos adultos, que impede as crianças de viverem certo
tipo de situações de risco. Quer isto dizer que a linguagem e as
proibições que vêm das bocas dos adultos, o não sistemático e persecutório, não
permitir que as crianças tenham certo tipo de experiências que incluem
níveis de risco maiores, só estão a conduzir a um analfabetismo motor e
social.
Que tipo de
“nãos”?
O “não subas”, o “olha que cais”,
“não vás para ali”, “tem cuidado”, “não trepes à árvore”. Impedem as crianças
de terem estas experiências, que são próprias da idade. Instalaram-se medos nas
cabeças dos adultos. Medos das crianças serem autónomas. Nós nascemos para
sermos autónomos e para termos, ao longo do processo de desenvolvimento, maior
autonomia e maior independência. Basta ver como é que as crianças hoje vivem a
cidade, como as cidades estão preparadas para as crianças. Nós estamos a cometer
o erro de querer obter sucessos rapidamente, de querer que as crianças cresçam
rapidamente, de que estejam todos incluídos nos rankings, mas
estamos pouco preocupados com as suas culturas próprias. Não se está a ver o
ator, não se está a ver o aluno. Na escola o que deveria emergir era o aluno e
a criança, o que emerge é o professor e a burocracia.
As crianças
andam pouco na rua? Têm pouca autonomia?
Dou um exemplo, os percursos
escola-casa. Hoje, a maioria das crianças faz estes trajetos de carro, quando
há 30 anos o faziam a pé. Hoje, as crianças têm uma vivência do território
de forma visual e não de forma corporal. Quer dizer que as aventuras e as
brincadeiras, em contacto com a natureza, desapareceram.
As novas tecnologias passaram a
ter um lugar privilegiado no quotidiano da criança. Eu não tenho nada contra as
novas tecnologias, mas tem de haver bom senso e um critério de saber gerir bem
o tempo e o espaço destas novas tecnologias, em relação àquilo que são as
necessidades biológicas do corpo.
"Como é que queremos que as nossas crianças sejam empreendedoras se
estamos a retirar-lhes todas as possibilidades de elas aprenderem a fazer isso?
A construção de uma cultura empreendedora faz-se quando se dão possibilidades
para que a criança possa brincar. Se nós retiramos aquilo que é a identidade da
criança, que é brincar de forma livre, com um nível de margem de risco muito
superior àquela que os adultos têm, elas com certeza que não vão ter condições
de serem verdadeiramente autónomas."
Mas
eventualmente elas vão andar sozinhas na rua… Quando chegar esse dia vão
estar menos preparadas?
São crianças menos preparadas,
mais imaturas, com maior dificuldade de resolução de problemas, porque têm
menos autonomia, têm menos capacidade de resolução de problemas. Num país como
este, que passou uma austeridade tão violenta, onde se fala tanto em
empreendedorismo, como é que queremos que as nossas crianças sejam
empreendedoras se estamos a retirar-lhes todas as possibilidades de elas
aprenderem a fazer isso?
A construção de uma cultura
empreendedora faz-se quando se dão possibilidades para que a criança possa
brincar. Se nós retiramos aquilo que é a identidade da criança, que é
brincar de forma livre, com um nível de margem de risco muito superior àquela que
os adultos têm, elas com certeza que não vão ter condições de serem
verdadeiramente autónomas nem de terem uma socialização suficientemente matura.
Há uma relação muito grande entre a qualidade e a quantidade do brincar na
infância e na adolescência e a passagem para a vida adulta.
Como assim?
Digamos que um corpo que não é
feliz na infância é um um corpo que vai pagar muito caro no futuro. Se olharmos
para outras culturas de infância — nos países que estão em desenvolvimento e
nos países pobres — podemos ver que pode haver fome e problemas de
sobrevivência extrema, pode haver até violência extrema, mas as crianças têm
alguma liberdade de ação e têm muitas vezes uma capacidade de resolução de
problemas, de resiliência, muito interessantes. Coisa que não acontece nos
países muito desenvolvidos, onde há uma superproteção às crianças.
Temos um bom clima, um nível de segurança que é dos
melhores da Europa, temos uma natureza e uma cultura interessantíssimas e
estamos a desperdiçar essa possibilidade
Fizemos um estudo recente aqui na
Faculdade de Motricidade Humana sobre a independência e a mobilidade da
criança. Em 16 países Portugal aparece em décimo lugar. Temos um índice de
mobilidade muito abaixo dos países do norte da Europa. Quer isto dizer que
o nível de autonomia e de independência de mobilidade está a ser um
problema muito sério nas culturas de infância do nosso país. Um país que tem um
território muito apropriado para que as crianças possam viver o espaço
exterior. Temos um bom clima, um nível de segurança que é dos melhores da
Europa, temos uma natureza e uma cultura interessantíssimas e estamos a
desperdiçar essa possibilidade. As crianças já não contactam com a natureza, já
não saem à rua, desapareceram e muitas vezes, o tempo que restava à
criança para poder fazer isto tudo está restringido.
Falando
agora dos mais pequeninos, das crianças a partir dos 3 anos. O que tem
observado em relação à motricidade destas crianças?
Temos hoje crianças de 3 anos que
ao fim de dez minutos de brincadeira livre dizem que estão cansadas, temos
crianças de 5 e 6 anos que não sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7
anos que não sabem saltar à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem
atar os sapatos. As coisas mais elementares, quer do ponto de vista motor, quer
do ponto de vista de motricidade grosseira, quer da motricidade fina, tiveram
um atraso significativo. Claro que há exceções, claro que há crianças notáveis
na sua apreensão e na sua coordenação motora global, mas se observarmos
estatisticamente crianças do nosso tempo e crianças de há 30 anos, há uma
diferença muito substancial.
Mas o que se
pode fazer concretamente?
Se as crianças não brincam é
porque os pais também não têm tempo para elas. Temos de fazer um grande plano
de salvação nacional no que respeita à formação parental. Os pais têm que ter
mais informações e mais formação sobre a importância de a criança ser
fisicamente ativa. E livre.
Mas os pais
podem pensar: o meu filho anda no ténis, e no futebol e na natação,
pratica muito desporto…
Isso não resolve nada. Nem uma
boa alimentação, nem exercício físico apenas resolvem o problema da iliteracia
motora ou do excesso de gordura. A questão é multifactorial.
Tem de se olhar para a
alimentação, com certeza, temos de olhar para a atividade motora e física e
lúdica, mas temos de encontrar soluções no espaço construído que facilitem a
possibilidade de as crianças virem para o exterior e terem contacto com a natureza
e terem tempo para brincar. E por isso tem de haver flexibilidade de horários
de trabalho, tem que haver políticas de maior acordo entre o tempo de trabalho
da família e da escola, de modo a que haja mais qualidade de vida.
Por isso é importante saber que
é tão importante a criança estar no recreio a brincar, como estar dentro
da sala de aula. E isto não foi cuidado. Ainda para mais numa altura em que a
criança em casa não brinca. E a criança ao pé de casa também não brinca. E não
tem condições nem de acessibilidade, nem tempo, para frequentar os espaços de
jardins públicos e os espaços de jogo.
"Se tivesse de ter uma estratégia para os espaços de jogo para
crianças em Portugal, começava por desequipar tudo. E montava tudo
de novo."
Chegámos aos
parques infantis. O que existe em Portugal é adequado às crianças?
Noventa por cento dos nossos
parques infantis são equipados com sintéticos. Essas empresas, que vendem esses
materiais para Portugal, são oriundas de países onde esse material não é
vendido. Só vendem em Portugal. Porque os parques infantis em Portugal são
escolhidos por catálogo, não são feitos com os atores, que são as crianças, não
há projetos educativos para fazer o espaço de jogo, não há participação. Há um
dispêndio financeiro enormíssimo do erário público, que não serve para nada.
Eu, se tivesse de ter uma estratégia para os espaços de jogo para crianças em
Portugal, começava por desequipar tudo. E montava tudo de novo.
Como é que
deviam ser esses parques infantis?
Deviam ter uma lógica participativa
da comunidade e dar mais soluções “selvagens” do que dinâmicas pré-formatadas,
quer nos equipamentos quer nos espaços. O tartan é
mais perigoso do que as aparas de madeira, ou a brita ou a relva. A
qualidade do envolvimento tem sempre a ver com as possibilidades de ação das
crianças. E quanto melhor essa qualidade, em termos de risco e de valor lúdico,
melhor será a capacidade de resposta das crianças a uma estimulação que as faz
crescer, que as torna mais autónomas.
"Um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento motor, ao
desenvolvimento percetivo, ao desenvolvimento da atividade lúdica é o
comportamento dos pais."
Mas se
calhar os pais quando ouvem falar de risco ficam assustados…
As crianças têm uma grande
capacidade de autocontrolo.
Os pais têm
de perder o medo?
É claro que esse é um dos maiores
obstáculos ao desenvolvimento motor, ao desenvolvimento percetivo, ao
desenvolvimento da atividade lúdica: o comportamento dos pais. A
Academia Norte-Americana de Pediatria fez um apelo a todos os pediatras para
que, nas consultas com os pais, os convidassem a brincar mais com os filhos e a
saírem mais à rua. Isto é, brincar mais em casa e “go out and play”.
Se a Organização Mundial de Saúde
considerar que o sedentarismo é uma doença, temos um problema mais sério que a
obesidade. Temos de ter um plano de emergência para que as crianças tenham o
que merecem em determinada idade. E a maneira como se está a fazer este
controlo das energias, a falta de tempo que os pais têm, os medos que se
instalaram na cabeça dos pais e a forma como o planeamento urbano é feito,
significa que temos aqui todos os condimentos para termos uma infância que está
a crescer com problemas muito complicados, do ponto de vista do conhecimento e
do uso do seu corpo.
As crianças
que vivem nos meios menos urbanos ainda são privilegiadas no que diz respeito à
independência e à autonomia?
Ainda estávamos convencidos de
que haveria alguma diferença, quando analisávamos a questão entre estrato
socioeconómico ou relações entre cidade, vila e aldeia. Já tudo mudou.
Formatou-se o estilo de vida, independentemente se é cidade ou é aldeia. O ecrã
alterou muito significativamente a vida das crianças e dos pais. Passou-se da
trotinete ao tablet de uma forma rapidíssima e não há
equilíbrio. E o que está em causa neste momento é que nem a atividade
desportiva que as crianças fazem em clubes, nem a educação física escolar, nem
o desporto escolar — que são muito importantes — são suficientes para acabar
com o sedentarismo que existe.
Parece que é um crime brincar à luta, parece que é
um crime brincar aos polícias e ladrões, parece que é um crime fazer uma
descoberta, ou saltar um muro
As crianças têm de voltar a ter a
possibilidade de terem amigos e de serem mais ativas. E para isso tem de haver
políticas muito corajosas para a infância. Os adultos andam de bicicleta, os
idosos passeiam na rua, os jovens adolescentes vão tendo soluções, agora as
crianças têm de brincar porque é a única alternativa que elas têm. Têm de
brincar em casa e os pais têm de brincar com elas, brincar ao pé de casa e os
pais têm de dar autonomia, brincar na cidade e tem que haver políticas de
planeamento urbano capazes de também oferecerem condições apropriadas aos
bebés, às crianças que estão a aprender a andar, às crianças que têm 5, 6, 7, 8
anos. Tem de haver equipamentos e espaços adequados que permitam mais
margem de risco, mais margem de perigo. Há uma relação muito direta entre risco
e segurança. Quanto mais risco, mais segurança e quanto mais risco, menos
acidentes. Enquanto isto não for visto nesta perspetiva, vamos ter mais
acidentes, porque há menos risco e por isso há menos segurança.
Pode
exemplificar?
O exemplo é simples, eu costumo
dá-lo de uma forma muito regular. As crianças têm de subir mais às árvores e os
pais não têm de ter medo por isso. Porque hoje as crianças sobem, mas já não
descem. O medo que se instalou na cabeça dos pais transmite-se muito facilmente
para as crianças. Um pai inseguro faz do seu próprio filho uma criança
insegura, vulnerável, que tem medo de arriscar.
Há 30, 40 anos, era perfeitamente
natural vermos duas crianças a brincar à luta. Hoje, parece que é um crime
brincar à luta, parece que é um crime brincar aos polícias e ladrões, parece
que é um crime fazer uma descoberta, ou saltar um muro, ou fazer equilíbrio em
cima de um muro. Instalou-se um medo quase que sobrenatural, de haver perigos
de morte de rapto de violação. Há um exagero na maneira como se instalaram
essas dinâmicas psicológicas nos adultos. Temos de combater isso.
Se um dia
houver esse confronto com o risco as crianças vão estar menos preparadas
para reagir?
Exatamente. E para se prepararem
e para se adaptarem e para serem empreendedoras. Ouvimos todos os políticos a
falarem que Portugal precisa de empreendedores. A nossa cultura foi desde
sempre uma cultura lúdica, de procurar o desconhecido, de procurar o incerto, o
imprevisível. A cultura portuguesa, na sua história, é sinónimo de
aventura. E esse bem precioso que tínhamos na nossa cultura está em
desaparecimento, o que eu lamento muito. E se esse erro trágico se faz na
infância, ele é um duplo erro. Não só para o empreendedorismo, mas para a saúde
pública, para a capacidade de aprendizagem escolar, para a capacidade de
harmonia familiar, no fundo para ter uma vida feliz e com qualidade.
"Um pai inseguro faz do seu próprio filho uma criança insegura,
vulnerável, que tem medo de arriscar. Hoje, parece que é um crime brincar à
luta, parece que é um crime brincar aos polícias e ladrões, parece que é um
crime fazer uma descoberta, ou saltar um muro, ou fazer equilíbrio em cima de
um muro."
Que conselho
dá aos pais das crianças em Portugal?
Os pais têm de abrir as suas
cabeças, libertar os seus medos, darem mais oportunidades às crianças para elas
terem uma vida mais saudável, mais ativa, com uma exploração do espaço natural
e do espaço construído que faça mais sentido.
Com que
idade uma criança deveria ou poderia estar habilitada a ir de casa para a
escola a pé?
A partir da segunda fase do
primeiro ciclo, do terceiro ano, as crianças já têm condições psicológicas,
físicas e sociais para poderem ir a pé para a escola. Há crianças que
vivem a cem metros da escola e vão de carro. Há pais que vão levar a criança
com 8 anos, muitas vezes, ao colo, ao professor na sala de aula. Não há
praticamente autonomia.
Como se pode admitir que haja
crianças que durante um dia não fazem um esforço correspondente a uma hora de
trabalho? Esse sedentarismo tem consequências nefastas a todos os
níveis. A verdadeira troika que precisa de ser reabilitada é a relação
entre a qualidade de vida da família, a qualidade de vida da criança e o
território. Estas três componentes têm de ser articuladas. Porque não
flexibilizamos os horários de trabalho?
Nos países nórdicos, que têm um clima muito mais
austero, as crianças andam na rua faça chuva faça sol, faça neve. Em Portugal,
cai um pingo e a criança é posta numa estrutura interior
Eu, na Austrália, vejo pais que
começam a trabalhar às oito da manhã e saem às quatro da tarde, em jornada
contínua. E depois vai tudo para os parques, tudo vai brincar e jogar, com uma
cultura recreativa fantástica. Mas não é só a Austrália. Nos
países nórdicos, que têm um clima muito mais austero, as crianças andam na
rua faça chuva faça sol, faça neve. Em Portugal, cai um pingo e a criança é
posta numa estrutura interior. Vou repetir: temos de aprender e ensinar as
nossas crianças a serem capazes de lutar contra a adversidade e nós temos
uma cultura ultra protetora, superprotetora.
E essa
cultura vai colocá-los em risco.
Em risco. A cultura
superprotetora põe as crianças em risco. O nível de maturidade cognitiva
vai evoluindo, e à medida que vai evoluindo – e por isso a criança aos 7 anos
tem capacidade de aprender a ler, a escrever e a contar, que são linguagens
abstratas – ela tem de brincar muito.
A ciência demonstra que, no ciclo
da vida humana, o pico maior, onde há mais dispêndio de energia, é entre os
cinco e os oito anos. Temos de ter muito respeito por isso. Não podemos
confundir tudo e achar que essas energias são anormais. São naturais e por isso
temos de olhar para as energias das crianças como energias naturais e não
patológicas. Há cinco, seis anos, falava num crescimento atroz de crianças
“totós” e eu acho que hoje em dia esse grau de imaturidade está a atingir
níveis com proporções inacreditáveis. Porque as crianças estão mesmo
vulneráveis e imaturas, porque nunca foram colocadas perante nenhum risco
que as fizesse crescer.
Podemos ter muito amor aos nossos filhos, muita
amizade pelos nossos filhos, mas o melhor amor que podemos ter por eles é
dar-lhes autonomia.
Podemos ter muito amor aos nossos
filhos, muita amizade pelos nossos filhos, mas o melhor amor que podemos ter
por eles é dar-lhes autonomia. Eu aprendi isto com um grande mestre, João dos
Santos, o maior pedopsiquiatra português. E ele ensinou-me, há muitos anos, que
educar é um vai e vem entre dar proximidade para dar segurança e dar
distanciamento para dar autonomia. Quando eu tenho uma criança que tem
condições para ter autonomia, eu devo dar-lhe autonomia. Quando ela tiver
necessidade de ter proximidade, eu dou-lhe afeto. E o que está a acontecer é
que nós, adultos, estamos a criar uma patologia obsessiva de querer
proteger tanto os nossos filhos e ao mesmo tempo criar-lhes uma exigência de
que sejam génios. Isto é um paradoxo e é uma contradição absoluta. Eu não
consigo entender como é possível termos chegado a isto.
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